Entrevista
Nesta edição, a RBPO tem o prazer de fazer uma entrevista um pouco diferente. Na verdade, a professora Valéria Souza Freitas nos contará de maneira geral sobre câncer bucal e sua visão sobre o tema. O depoimento foi coletado pelo nosso Editor Prof. Dr. Márcio Campos de Oliveira
Profa. Valéria Souza Freitas - Especialista e Mestre em Saúde Coletiva, Coordenadora do Núcleo de Câncer Oral da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
O câncer bucal é um problema de saúde pública no Brasil e em muitos países, devido aos altos indicadores de morbi-mortalidade. De acordo com o Instituto Nacional do Câncer (INCA), a estimativa de incidência de câncer para 2005, no Brasil, indicou ser o câncer de boca o oitavo tumor mais freqüente entre os homens e o nono entre as mulheres, com respectivamente, 9.985 e 3.895 novos casos, perfazendo um total de 13.880 casos novos. Embora a incidência e mortalidade por câncer bucal variem em diferentes regiões do mundo, os maiores índices da doença são verificados em países em desenvolvimento.
Um dos aspectos mais críticos do câncer de boca é que a maior parte dos casos chega aos hospitais especializados em estágio avançado, aumentando as possibilidades de mutilações e reduzindo as de cura. Neste aspecto, a doença reverte-se em alto custo econômico e social para o Estado e para a família, devido à dificuldade de reintegração do indivíduo mutilado na sociedade.
Os principais fatores de risco para o câncer bucal são o hábito de fumar e a ingestão de bebidas alcoólicas. Entretanto, fatores outros como infecções viróticas, fatores genéticos e dieta também têm sido relacionados à doença.
A história natural do câncer bucal tem seu início a partir da exposição do indivíduo a agentes carcinógenos físicos, químicos ou biológicos. A exposição contínua poder lesionar o ácido desoxirribonucléico (DNA), produzindo mutações, fraturas cromossômicas e outras alterações do material genético. Na fase pré-clínica, não há possibilidade de o profissional de saúde detectar a doença. Porém, medidas preventivas como a conscientização dos indivíduos para a remissão do uso de produtos derivados do tabaco e para a redução da ingestão de bebidas alcoólicas, bem como a motivação para hábitos alimentares saudáveis podem contribuir para evitar a evolução da doença. Na fase clínica, em que muitas vezes é perceptível a presença de lesão cancerizável ou neoplásica, o diagnóstico e o tratamento precoce podem e devem ser estabelecidos.
A história natural do câncer de boca indica, portanto, que a doença apresenta, em muitas situações, um curso relativamente longo, que pode ser precedido de lesões cancerizáveis e perceptíveis, o que facilita o diagnóstico da doença. A minuciosa inspeção e palpação da cavidade bucal, o conhecimento sobre os fatores de risco e o exame histopatológico da peça cirúrgica biopsiada são fundamentais para o diagnóstico conclusivo. Portanto, a progressão do tumor, o preparo do cirurgião-dentista para o diagnóstico e o acesso ao sistema de saúde para tratamento determinarão a lógica da evolução da doença.
E o que tem dificultado o diagnóstico precoce do câncer de boca já que a cavidade bucal é um local de fácil acesso e seu exame minucioso não requer alta tecnologia? Os procedimentos e exames complementares para a confirmação deste diagnóstico, sendo relativamente simples e de baixo custo, não deveriam facilitar o diagnóstico precoce da doença? Os fatores de risco para a doença, em sua maioria de ordem sócio-ambiental, não são passíveis de prevenção?
Acreditamos que, para o diagnóstico precoce e prevenção do câncer de boca, são necessárias políticas públicas direcionadas ao problema que facilitem o aumento do conhecimento da população acerca dos fatores de risco, sinais e sintomas comuns da doença e que permitam a sensibilização para o auto-exame da boca.
Um investimento crescente na formação e educação continuada dos cirurgiões-dentistas, proporcionando um atendimento humanizado e de qualidade nos serviços públicos de saúde também deve ser estabelecido como ação prioritária, visto que a maior parte dos casos são detectados em indivíduos de baixa renda e que dependem, em sua grande maioria, do Sistema Único de Saúde (SUS).
A formação dos cirurgiões-dentistas é uma situação delicada se considerarmos que a maior parte dos currículos de Odontologia apresentam componentes curriculares que abordam o problema do câncer de boca de forma fragmentada e com ênfase nos aspectos biológicos e de intervenção. Assim, até que ponto uma formação fragmentada, com pouca integração de componentes básicos e profissionalizantes e pouca valorização de componentes humanísticos (o que facilitaria a sensibilização do cirurgião-dentista para o problema) tem redundado na formação de profissionais capazes de enfrentar o problema?
A formação continuada dos profissionais de saúde deve envolver especialmente aqueles que integram o Programa de Saúde da Família e as Equipes de Saúde Bucal (ESB), incluindo os agentes comunitários de saúde. As atividades das ESB devem englobar atividades educativas para a redução de fatores de risco, o rastreamento de lesões cancerizáveis (screening) de forma a facilitar o diagnóstico precoce da doença, além da motivação da população para a realização periódica do auto-exame da boca.
Entretanto, de nada adianta os cirurgiões-dentistas estarem realizando o diagnóstico precoce do câncer bucal se o sistema público de saúde não tiver a capacidade de absorver e tratar os casos. Portanto, uma política séria de atenção ao problema requer uma melhor estruturação e investimento neste sistema de modo a reduzir o intervalo de tempo entre o diagnóstico e o tratamento da doença.
Combater o câncer de boca torna-se, portanto, um grande desafio para as Universidades responsáveis pela formação dos profissionais de saúde, para o sistema público de saúde, para os cirurgiões-dentistas e para a população.
Fonte: Revista Brasileira de Patologia Oral
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário